domingo, 8 de abril de 2018

A colecção de arte chinesa de Silva Mendes


(...) “É lamentável que em Macau, onde tantas obras de arte se concentraram, nunca um museu se houvesse fundado, que ao menos parte delas recolhesse”. A afirmação é de Silva Mendes numa crónica publicada a 14 de Março de 1920 no jornal “O Macaense” onde acrescenta que “tudo se tem dispersado; e com mágoa há pouco tempo lemos numa revista inglesa de arte que não há muitos anos foi daqui para Londres levado bom número de pinturas de Chinnery, entre as quais uma de grandes dimensões representando uma vista panorâmica desta colónia.”
Ironia da história, a sua colecção de objectos de arte (barros, cerâmicas, quadros, bronzes, estátuas, etc…) virá a ser parte substancial de um museu de Macau logo após a sua morte em 1931. São então muitas as vozes que se fazem ouvir em Macau reclamando a compra da colecção de objectos de arte chinesa que os herdeiros tinham tornado público que iriam vender.
Numa notícia do início de 1932 um jornal local descreve a colecção. “Muito antes do falecimento do Sr. Silva Mendes, o jornal chinês de Hong Kong, Va Seng, publicava notas acerca de pinturas da sua colecção, algumas das quais classificava de relíquias. E, se é certo que nem todas terão o mesmo valor, não é menor verdade que são para cima de tresentas e cincoenta pinturas, escolhidas por (como dizem os coleccionadores chineses) o homem que mais conhecia a pintura chinesa no Sul da China. Mas não só as pinturas, embora seja o forte da colecção. São os barros: cerca de tresentos exemplares de vários tipos, espécimes das épocas que vão de Sung a Ch'in Lung. É a estatuária de bronze de Tang e Ming. São os bronzes preciosos de On a Sung. É a loiça funerária das mesas épocas. É a estatuária de barro, moderna, mas de autores afamados já no Sul da China, como Chang Nam e Pun Ioc Si. São, embora muito desfalcadas pela explosão do paiol da Flora, as porcelanas delicadas dos séculos XVIII e XIX. São os quadros de Chinnery: um auto-retrato, um crayon, quatro quadros pequenos, uma aguarela e duas paisagens do norte da Europa. São muitas, muitas, muitas coisas mais, que seria impossível citar aqui. Sem acrescentar que entre essas preciosidades se encontram algumas que interessam, particularmente, a Macau, como os cobiçados quadros de Chinnery, que nesta terra viveu e ensinou, como os dos seus discípulos Marciano Baptista e Lam Kua e como os de Belsito. É certo que só um destes pintores é português. Mas todos o são na arte; todos fixaram, na tela, motivos portugueses; todos sentiram a alma portuguesa.
Na edição de 23.2.1932 o jornal "A Voz de Macau" publica um artigo intitulado "Um Brado" onde é notório o apelo ao governo para adquirir o espólio de Silva Mendes. “Os jornais de Hong Kong anunciam a venda da colecção Dr. Silva Mendes: uma rara oportunidade para coleccionadores. À venda a bem conhecida colecção do Dr. Silva Mendes, etc... Numa época em que, como se diz, a preocupação da humanidade é o culto da arte, ler tal notícia sem um calafrio, sem um estremecimento, sem um protesto, seria uma manifestação de indeferentismo que, felizmente, se não nota em todos. Ainda há quem pratique um pouco esse culto e vibre de indignação ao ver anunciada, em língua estrangeira, a venda de uma colecção preciosa, seleccionada, durante trinta anos por um artista português em terra portuguesa. É na verdade uma rara oportunidade; uma oportunidade que devia ser aproveitada, não por coleccionadores estranhos, mas pelo Governo da Província. Macau passaria a ter um museu, digno desse nome, com a dupla qualidade de ser um elemento valiosíssimo para aqueles que quizessem dedicar-se ao estudo da arte chinesa e de atraír à Colónia curiosos, coleccionadores, artistas e estudiosos que, para isso, é sobejamente conhecida a colecção. (…) Há muito, há dezenas de anos, que se sentiu em Macau a utilidade e necessidade de um Museu. O Museu Luís de Camões foi aberto ao público há uns três ou quatro anos, e para o ser, foi necessário que as direcções que por ele passaram dispusessem de uma enorme força de vontade e se sujeitassem a muito trabalho e muitas sensaborias. É que o Museu não teve, nunca, nem dotação nem rendimentos; dos objectos que o constituem, uns são oferecidos e outros (a maior parte) depositados, confiados à guarda, conservação e responsabilidade individual dos membros da Direcção.
Possue já, é certo, alguns documentos de valor para estudo da nossa influência no Oriente; mas está longe de atingir os fins que tem em vista uma instituição desta natureza, o que só conseguirá quando o Governo da Província se decidir a aproveitar oportunidades raras, como a que se lhe depara agora. Está à venda a colecção Dr. Silva Mendes, um museu que, como disse o doutor Juiz Brito e Nascimento na sua oração fúnebre, "está aí a lembrar a administração da colónia a indesculpável incúria de não ter feito o mesmo em quatro séculos do governo. Que se procure, desde já, reparar essa incúria de quatro séculos. Que a administração da Colónia não perca a oportunidade de enriquecer o Museu Luís de Camões, enriquecendo, assim, o património artístico a legar aos vindouros.”
A 7 de Março de 1932 o presidente da direcção do Museu Comercial e Etnográfico Luís de Camões num ofício enviado ao Governador “chama a atenção do governo” para o facto de embora o museu “possua já alguns documentos de valor para o estudo na nossa influência no Oriente, está ainda longe de atingir os fins a que se propõe uma instituição desta natureza”. E assim, explica-se que “está agora à venda, anunciada já em jornais de Hong Kong, a colecção do falecido doutor Manuel da Silva Mendes, conhecida pelos objectos de valor que possui e que, adquirida para o Museu, o tornaria um dos melhores do sul da China, fazendo com que a Colónia fosse visitada por grande número de coleccionadores estrangeiros.” Mas, porque o museu “não tem dotação” sugere-se que seja “nomeada uma comissão a fim de estudar as possibilidades e condições de compra e fazer as propostas necessárias.”
Dois dias depois (9.3.1932) surge um despacho do governo (P.P. 813/1932) em que se propõe para analisar o assunto o Inspector da Instrução Pública. Este, logo no dia 10, propõe três nomes para essa comissão. O Encarregado do Governo, João Pereira de Magalhães, aceita a proposta e em Abril nomeia uma comissão “para estudar as possibilidades e condições de compra da colecção dos objectos de arte de Silva Mendes”. A comissão é presidida por António Augusto de Vasconcelos Raposo (sub-director dos Serviços de Fazenda e Contabilidade) e conta ainda com Pedro Guimarães Lobato (professor do Liceu) e Horácio Pais Laranjeira (advogado, foi ainda director da biblioteca nacional e do museu Luís de Camões sendo também coleccionador de arte chinesa).
Os membros da comissão admitem “não ter conhecimentos suficientes para definir o interesse que os objectos possam ter” (5.4.1932) e solicitam o apoio da Repartição do Expediente Sínico a quem dirigem de imediato um questionário e uma lista “dos objectos de arte chinesa que o governo pretende adquirir”. Dessa lista, que não se sabe se reflecte toda a colecção ou apenas os objectos que as autoridades admitiam comprar, fazem parte “7 quadros com incrustações de louça, um grupo de 9 objectos de louça azul, um grupo de 176 objectos de louça (porcelana), um grupo de 105 objectos de louça (porcelana) azul e branco, um grupo de 12 objectos de esmalte, um grupo de 28 objectos de jade, um grupo de 27 quadros, um grupo de 300 objectos de louça tipo Shek-Wan (barros), um grupo de 336 pinturas e álbuns, um grupo de 18 táboas com inscripções, um grupo de 60 objectos de bronze, um grupo de 50 objectos de louça tumular, um grupo de 32 objectos de louça, um grupo de 35 objectos de louça branca (porcelana e barros), um grupo de 12 estátuas (em bronze, madeira dourada e em pasta coberta com folha d’oiro), um grupo de 7 estátuas (em barro).” (...)

in Biografia de Manuel da Silva Mendes (1867-1931), da autoria de João F. O. Botas, co-edição: autor/ICM, 2017
Nota: as fotos (das peças )deste post são da autoria de José Santos e foram tiradas em 1973.

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