sexta-feira, 28 de abril de 2017

Retrato económico na década de 1910


No primeiro número da Revista Colonial (Janeiro de 1913) Álvaro de Mello Machado, governador de Macau na época, assina um artigo - transcrito em baixo - onde traça um retrato da economia local não muito animador. Segundo o governador 2/3 dos rendimentos da então colónia provinham da exploração do jogo e da preparação e comércio do ópio. Este cenário, aliado à falta de recursos naturais, levam Álvaro Machado a defender novas ideias para dinamizar o comércio local: a construção de um caminho de ferro com ligação à China - "a não se realisar esse caminho de ferro, o futuro de Macau afigura-se extremamente modesto", escreve - a criação de uma agência comercial de produtos portugueses em Macau e o estabelecimento de uma ligação marítima regular com o território a partir de Lisboa.
Com excepção de uma pequena representação de produtos portugueses através da Agência Colonial, nenhuma das ideias foi concretizada. Curiosamente o governador era contra a grande obra que se projectava na altura, a dos Portos de Macau, por a considerar megalómana em termos de gastos. E assim foi... para além de se ter arrastado por muitos e muitos anos. Assinale-se ainda o facto do governador chamar a atenção para o potencial da actividade turística.


A pequena colonia do extremo-Oriente, que ha mais de tres séculos vem attestando ao mundo a tenacidade e a resistência dos portuguezes, não tem hoje a importância que em tempos idos lhe deu a situação privilegiada que soube grangear, iniciando o commercio europeu com a lendaria e mysteriosa China. Não tendo sabido manter-se em face da concorrência de dia para dia mais energica das auctoridades extrangeiras; debatendo-se inutilmente no regimen de asphixiante centralisação que lhe crearam os governos da metrópole; tendo deixado escapar todas as opportunidades em que, de concerto com as outras potencias, podia ter defendido e melhorado a difíicil situação em que se encontra perante a China; Macau, erguendo-se coquetiemente por sobre os graciosos contornos da pequenina peninsula que termina para o sul a ilha Heong-Shan, pouco mais é agora do que um monumento histórico das grandezas lusitanas de outras eras. Sem recursos proprios de qualquer natureza, dependendo por isso em absoluto dos territórios que a rodeiam, Macau só pôde aspirar ao papel de entreposto commercial de maior ou menor importância que desde os mais remotos tempos da sua existência tem desempenhado; se bem que, como cidade de residência e como ponto merecedor da curiosidade dos turistas, possa alcançar uma situação de relativo destaque, que não deve ser por fórma alguma despresada. Embora o commercio que por intermédio da nossa pequena colonia se efectua, attinja o valor de treze mil contos de réis, sete mil contos de importação e seis mil de exportação, a necessidade imperiosa de manter a sua qualidade de porto franco limita extraordinariamente os recursos que a fazenda publica pôde auferir com essa proveniência. E assim, tem sido necessário para fazer face aos encargos da administração recorrer a outras fontes de receita que, seguindo a linha da mais fraca resistência, neste caso as das tendências naturaes do meio, se localisaram na exploração do jogo e no commercio e preparação do opio. A estes dois poderosos auxiliares deve a Província dois terços dos seus rendimentos totaes; e sobre elles como pontos de apoio principaes gira portanto, a sua vicia administrativa. 
Todavia, o commercio relativamente importante que por intermédio de Macau se eflectua favorece algumas manifestações de actividade e garante-lhe uma densidade de população considerável (a cidade com uma area de 330 hectares tem uma população de 07:000 indivíduos) que devidamente aproveitadas pódem dar origem a um progresso compensador das energias que ali se venham a dispender. A importância de Macau como entreposto commercial vem-lhe exclusivamente da sua posição geographica e do seu porto, embora o apparecimento da colonia ingleza de Hongkong tenha reduzido a estreitos limites as vantagens inherentes a estes dois factores.
Dentro das actuaes condições, e enquanto ellas se mantiverem, não é crivel que muito se possa esperar de Macau, no tocante ao augmento do seu valor como entreposto commercial e ao seu progresso economico consequente, porque se encontra reduzido aos limites naturaes da sua esphera de acção, que hoje se reduz ás regiões extremamente próximas que d'elle forçadamente dependem. O grande problema a resolver em Macau reside, pois, no alargamento dos limites da sua influencia como entreposto commercial, combatendo não a supremacia de Hongkong, porque tal seria uma utopia, mas vencendo a concorrência dos numerosos rios e canaes que cortam os territórios chinezes vizinhos em todas as direcções, e fazendo do porto portuguez o escoamento natural dos productos das ferteis e laboriosas regiões que o' circundam. 
Em poucas palavras: o desenvolvimento de Macau depende da construcção de um caminho de ferro de penetração que, tendo por extremo a nossa colonia, facilite, tornando-se superiormente vantajoso a todos os outros meios de communicação, a sabida e a entrada das mercadorias pelo porto que nos pertence.
A construcção d'esse caminho de ferro, que constitue a única esperança de uma vida desafogada para a colonia, não é, infelizmente para nós, um objectivo de fácil alcance. E quem conhecer o estado das nossas relações com a China, nunca se poderá convencer de que uma tal vantagem se possa conseguir sem uma grande dóse de chance por nossa parte, ou sem que dêmos em troca compensações de valor, alliadas a uma bem orientada acção diplomática. Não será dar provas de um pessimismo exagerado pensar que nunca a nossa colonia de Macau verá realisada a sua grande ambição, o único emprehendimento que a pôde salvar; mas também não estamos em face de um impossível e portanto devemos - temos pelo menos essa obrigação moral - empregar todos os esforços para se alcançar o que deveria ter sido objecto das mais persistentes attenções de todos os governos. 
A não se realisar esse caminho de ferro, o futuro de Macau afigura-se extremamente modesto, demais approximando-se a passos agigantados a reducção inevitável das suas mais importantes fontes de receita - o jogo e o opio; e milagre de administração será se fôr possível conseguir que a colónia continue por muito tempo a bastar as suas próprias necessidades. Não é, porém, dos fortes cruzar os braços ante a adversidade, ainda mesmo quando ella se apresenta inevitável e sem remedio. É preciso, é indispensável luctar; para que ao menos reste a consciência de que se resistiu o máximo possível. Emquanto não apparecem os dias de desgraça, que a sorte pôde bem querer que nunca cheguem, as auctoridades portuguezas podiam aproveitar um campo de exploração que não deve ser desprezado. Macau ainda pôde ser um meio de restabelecer o commercio entre o extremo-Oriente e Portugal, favorecendo a entrada na China, dos nossos vinhos, pelo menos, e talvez de alguns outros productos de origem nacional e permittindo a importação directa de alguns productos chinezes, como o chá, as sedas, os charões, louças, trabalhos em marfim, bordados, etc. 
É este em todo o caso um assumpto a estudar e que deve prender a attenção do nosso commercio e industria de mãos dadas com o governo da colonia. A que resultados uma agencia commercial portugueza, estabelecida em Macau tendo como um dos seus principaes objectivos a collocação dos nossos vinhos, poderá conduzir? E que vantagens poderão advir para o publico portuguez da importação directa dos artigos chinezes que mais se consomem e maior apreço teem no paiz? Uma carreira de navegação directa entre Lisboa e Hongkong, muito fácil de conseguir, evitando os trasbordos e delongas a que hoje estão sujeitas as mercadorias que transitam entre estes dois pontos, assim como a extensão aos navios estrangeiros dos benefícios que as nossas pautas concedem á navegação nacional, que não existe para essas paragens, teriam indiscutivelmente uma influencia benéfica na probabilidade de realisação d'este ideal. A bôa vontade e o desejo de ganhar dos commerciantes, auxiliados pelas facilidades que o governo de Macau pôde conceder, fariam o resto.
Alguma coisa se deve tentar nesse sentido. É indispensável que o commercio portuguez se lembre de que novos horisontes se pódem abrir á sua actividade, onde energias estrangeiras se degladiam ha vários annos num esforço continuado e persistente, aproveitando as faculdades de uma colonia, onde a quasi totalidade dos capitaes são chinezes e onde as iniciativas portuguezas se resumem aos tímidos ensaios de mal orientado commercio de alguns pobres reformados a quem os azares da vida prenderam para sempre áquelle pedaço de terra. 
Álvaro de Mello Machado. Governador de Macau

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