quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

Recordando Leonel Barros

A Sala de Colecções Raras da Universidade de Macau vai receber um exemplar de “Macau – Coisas da Terra e do Céu”, autografado por Leonel Barros. O autor do livro, que faleceu no início de Fevereiro, era considerado um contador de histórias de Macau e um “filho da terra”. Leonel Barros tem várias obras espalhadas pelo território. “Macau – Coisas da Terra e do Céu” foi publicado em 1999 e debruça-se em aspectos da vivência de Macau, lendas e tradições. Anteriormente detido pela Biblioteca Comendador Joaquim Morais Alves do Instituto Internacional de Macau, o livro vai agora ser entregue à Universidade de Macau, de forma a assinalar a morte deste promotor da cultura do território.Sempre ouvi dizer que as más notícias se espalham a velocidade bem maior que as boas e hoje, com os meios de comunicação disponíveis, é num instante que delas tomamos conhecimento. Vem isto propósito da infausta notícia do falecimento do Leonel Barros figura muito estimada da comunidade macaense com quem, ao longo de anos, partilhei muitos e agradáveis momentos.
Notícia do Hoje Macau de 10-2-2011
A família esteve ligada aos vapores que faziam a ligação entre Macau e Cantão.
'Neca' fez muitas viagens ainda adolescente
"Embora nunca tivesse estado em Portugal, evidenciou um grande sentimento de portugalidade e, como há anos tive oportunidade de referir, a simplicidade e a filantropia eram traves mestras da sua postura. Natural de Macau aí se criou tendo, desde muito cedo, manifestado uma invulgar propensão pelo desenho e a música, a que, anos mais tarde, se juntaria o gosto pela criação de animais, prática que fazia com enorme amplitude, pois além de dúzia e meia de cães, fui testemunha que, em casa, chegou a ter cobras que, perigosas ou não, guardava em sacos de pano e às quais ma-nuseava com afagos!
A nossa relação pessoal teve início aí por volta de 1974, quando vivíamos ao lado do demolido Bairro Albano de Oliveira e ele me deu a conhecer interessantes apontamentos sobre ofídios que, desde logo o incentivei a publicar, e vieram a público em 1978. A facilidade com que manuseava o lápis era impressionante e constituía um regalo vê-lo criar as mais diferentes imagens, delas se valendo e bem para ilustrar os textos que redigia. Por diversas vezes tive o privilégio de o ver desenhar, deliciando-me com as peças que com graça e subtileza fazia despontar. Como esquecer o trabalho que executou na sala de refeições do antigo Hotel Bela Vista, em que com pequenos azulejos reproduziu, com grande fidelidade, a Torre de Belém, desde há anos foi classificada como peça portuguesa de Património Mundial? E a sessão de desenho que, certa tarde no Hotel Hyatt proporcionou aos membros do Rotary Club Amagao! Durante os anos em que trabalhei nos SFAM, foi um excelente colaborador que contribuiu para ilustras temas relacionados com a conservação da natureza, a origem de animais e plantas, tem-do-lhe muito a ficado dever as primeiras “Semanas Verdes de Macau” realizadas no início dos anos oitenta. E, é com particular comoção que dele me recordo ao desfolhar o livro de poemas que editei por ocasião dos meus 25 anos de residência permanente em Macau, onde figuram sete desenhos de sua autoria e alusivos aos temas em apreço. 
Era assim Macau (1939) na juventude de Leonel Barros
A música foi outra área em que se moveu com facilidade tendo-se revelado bom executante de diferentes instrumentos como sejam a flauta, viola e bateria. Tal dom e a afabilidade de relacionamento levaram-no a integrar conjuntos musicais, como o “Six Rockers”. Sempre sorridente e bem-disposto, a sua presença era contagiante e, por diversas vezes o vi actuar. Aliás, o Neco como vulgarmente era tratado, constituía presença obrigatória nas peças de autoria doutro grande macaense e amigo que foi José dos Santos Ferreira, vulgo Adé. Em minha casa, onde, de quando em vez, aparecia prendia a atenção das minhas filhas que, encantadas, o ouviam contar histórias locais, valorizadas pela abundância de gestos e a nunca faltavam os efeitos sonoros. Era o que se pode classificar com um entertainer nato. Funcionário do Montepio, entidade de que se aposentou em meados dos anos 70, cultivou, em profundidade e anos a fio, o gosto pelos animais, sendo muito requeridos os valiosos préstimos que, em sua casa, a qualquer hora e fosse a quem fosse, disponibilizava minimizando o sofrimento de animais e sem cobrar tratamentos cujos encargos suportava, chegando ao ponto de ceder medicamentos que adquiria e armazenava numa pequena farmácia. Os animais aprisionados em estreitas gaiolas de rede ou gradeadas a ferro e prontos a ser consumidos em alguns dos restaurantes da Rua da Felicidade tinham nele condoído protector, tendo chegado a conseguir que alguns fossem libertados e salvos. Quanto às peças existentes no Jardim da Flora tiveram nele um dedicado amigo a quem nem as inúmeras mordeduras dos macacos impediram de, com grande frequência, os visitar e tratar. Dotado dum arguto olhar, conseguia aperceber-se do estado dos animais em cativeiro e muitas vezes o vi recomendar determinado medicamento ou a aplicação dum reforço vitamínico. Aí, bem merecia que o seu nome fosse perpetuado junto à fonte ou ao lado do busto de Alfredo Augusto de Almeida ((1898-1971) outro conceituado macaense que se revelou ser profundo conhecedor da flora local. Seria a homenagem da sua terra.
Com uma prodigiosa memória era capaz de descrever cenas ocorridas há dezenas de anos e chamar à colação intervenientes que delas guardavam vaga lembrança ou total esquecimento. Em boa hora a Associação Promotora da Instrução dos Macaenses (APIM) lhe encomendou a redacção de memórias e tradições macaenses, as quais veio a editar em alguns volumes que devem constituir leitura obrigatória para quem tencione conhecer o que foi Macau. Foi pois com imensa tristeza e uma lágrima incontida que soube que falecera. Paz à sua alma."
Artigo de António Estácio publicado no JTM de 8-2-2011

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